No dia 25 de maio de 2022, na cidade de Umbaúba-SE, Genivaldo de Jesus Santos, um homem negro diagnosticado com esquizofrenia foi torturado e assassinado pela Policia Rodoviária Federal, à luz do dia e sem chances de defesa. Esse seria mais um “caso isolado”, se não fosse comum vir à tona diariamente casos de violência cometidos pela polícia contra a população negra do país. A justiça é lenta e seletiva nesses casos, o que deixa evidente a perpetuação do racismo estrutural na nossa sociedade.
Um pulo na história
O Brasil foi o último país abolir a escravidão em 1888, mais por pressão externa do que pela defesa dos direitos das pessoas escravizadas, abolição concretizou a liberdade dos negros escravizados, porém não trouxe nenhuma garantia acerca de como essas pessoas sobreviveriam depois desse contexto escravagista de quase 500 anos.
Não era incomum a existência de leis que proibiam o acesso de pessoas negras a faculdade ou à direitos básicos, como é o caso da Lei Lei n. 1, de 1837 que em seu artigo 3º diz:
“São proibidos de frequentar as Escolas Públicas:
[…] Os escravos, e os pretos Africanos, ainda que sejam livres ou libertos.”
Antes da abolição, em 1808, já existia Intendência-Geral de Polícia da Corte, que era responsável pela manutenção da corte, além de investigar e capturar os “negros fujões”. Após a abolição, essa força policial ficou responsável por manter a ordem e apreender os sujeitos que desrespeitam a lei ou que fossem minimamente suspeitos diante da ótica da sociedade da época. A polícia se mantém então, com o objetivo de garantir a segurança de uns, através da opressão de outros.
A estrutura do racismo hoje
Educação de qualidade inferior, falta de acesso ao ensino superior, menores oportunidades de emprego e qualificação. O racismo estrutural normaliza a hierarquia que mantém pessoas negras na base da pirâmide, porque segundo a visão do cidadão de bem, é este o lugar que a população negra merece ocupar e do qual não deve sair. Segundo o Milton Santos: *
“[...] a chamada boa sociedade parece considerar que há um lugar predeterminado – lá embaixo – para os negros. E assim tranquilamente se comporta”.
Não à toa, casos de pessoas negras mantidas em situação análoga à escravidão são trazidos à tona todos os dias.
Essa herança de preconceito também faz com que a sociedade tenha uma visão nítida de quem são as pessoas suspeitas e quem são os cidadãos de bem. É a continuidade dessa estrutura racista que faz com que existam um padrão que estipula quem merece mais ou menos dignidade, e estipula onde a força policial vai ser mais truculenta e onde o disparo só vai ser feito em caso de extrema necessidade. A geografia da morte percorre as favelas de todo Brasil sendo legitimada mesmo que aconteça a luz do dia e ainda que a vítima dessas ações policiais sejam inocentes, embasada pela necropolítica.
A justiça definitivamente não é cega: ela enxerga cor e escolhe quem tem direito à vida através do seu pré julgamento.
Entrevista com Caliane Nunes
Para falar um pouco sobre as estratégias do racismo estrutural, convidamos Caliane Moura Nunes**
1. Como o sistema penal brasileiro reproduz valores e padrões Colonialistas?
O Direito Penal surge como braço do Estado com o objetivo de punir delitos praticados e para estabelecer a “ordem”. Com o sistema Penal brasileiro, não é diferente, porém existe um recorte que deve ser feito, pois o Brasil é um país racista, portanto a herança colonial do processo de escravização está presente em todas as esferas da nossa sociedade. No período colonial os escravizados eram marginalizados, na verdade, não eram reconhecidos como seres humanos, portanto a lei penal os atingia apenas como os réus, a eles não era dado o direito de defesa e não tinham garantia de direitos, apenas deveres. Na atualidade esse quadro muda muito pouco com o processo de democratização, pois a prática é totalmente diferente da teoria. Vemos hoje a reprodução das diversas formas de violência reproduzidas, porém de maneira velada, onde a maioria dos ocupantes dos cargos que envolve poder são pessoas não negras e a maioria que estão no lugar de excluídos e violentados são negros. Isso ocorre em todos os espaços, não apenas no sistema penal. Porém não se pode deixar de olvidar que o sistema carcerário hoje é ocupado por uma maioria negra e que isso tem justificativa no racismo estrutural que é intrínseco ao nosso país.
2. Como o sistema Judiciário brasileiro perpetua o racismo estrutural?
Inicialmente pela falta de ocupação de pessoas negras nos espaços de poder e decisão. O debate sobre as cotas raciais ainda precisa ser aprofundado para que possamos obter um sistema Judiciário que contemple a paridade racial.
3. O que é a lei de drogas e até que ponto ela pode ser considerada uma estratégia racista?
A lei de drogas como seu próprio artigo primeiro descreve são medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas e define crimes. Ocorre que em um país racista os mais atingidos negativamente com a referida lei são os pretos que criminalizados, que estão na base da pirâmide como consumidores finais e que comercializam e ficam com todo ônus. A questão das drogas em nosso país deve ser encarada como uma necessidade da saúde pública e a criminalização deve ser direcionada a quem está no topo da pirâmide comandando o sistema que envolve a produção e a organização do tráfico ilegal. A estratégia racista está justamente em criminalizar os responsáveis indiretos, que são em sua maioria pessoas pretas e pobres, vítimas de uma sociedade excludente que nos dá poucas opções de sobrevivência.
4. O que significa o termo Necropolítica?
Necropolítica é uma terminologia utilizada pelo filósofo camaronês Achille Mbembe, que discute o uso do poder político para definir quem deve viver e quem deve morrer no sistema capitalista. São as estratégias utilizadas inclusive pelo Estado para controlar e disciplinar através do poder social a vida das pessoas.
5. Sobre o encarceramento em massa da população preta: As políticas de segurança pública são realmente pensadas para a recessão desta população na sociedade?
Infelizmente vivemos em uma sociedade em que a população preta está no lugar de encarceramento em massa, isso se justifica por um processo histórico de exclusão e exploração e falta de oportunidades. O encarceramento em massa é uma das inúmeras estratégias para manutenção do ciclo que o racismo nos coloca.
6. A justiça tem cor?
A representação da justiça através da deusa Themis, nos mostra que a justiça não deve ver diferenças entre raça, gênero, opção sexual, etc. A justiça precisa ser apenas justa, por isso a balança nos representa, porém muitas vezes na prática não acontece dessa forma. Vivemos em uma sociedade racista. Basta olhar o entorno e ver quem ocupa os espaços no sistema de justiça. Essa ocupação tem cor e tem gênero.
*Milton Santos:
Geógrafo, escritor, advogado, cientista e professor universitário.
**Caliane Moura Nunes
Advogada, antirracista, historiadora, consultora jurídica, membra da Comissão da Advocacia Negra e da Comissão de Prerrogativas da OAB/BA.
Entrevista realizada em 29/06/2022
Referências:
Milton Santos: Notas sobre o Racismo Estrutural Brasileiro, Portal Afro, acesso em 28/06/2022, disponível em:
“Morte de Genivaldo Santos em abordagem da PRF em Sergipe: o que se sabe e o que falta esclarecer” Acesso em 29/06/2022, disponível em: https://g1.globo.com/se/sergipe/noticia/2022/05/26/homem-morto-em-abordagem-da-prf-em-sergipe-o-que-se-sabe-e-o-que-falta-esclarecer.ghtml
Artigo: POLÍCIA E SOCIEDADE: uma análise da história da segurança pública brasileira
Acesso em 30/06/222, disponível em:
Lei n. 1, de 1837, e o Decreto no 15, de 1839, sobre Instrução Primária no Rio de Janeiro,
acesso em 29/06/2022, disponível em:
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