Nos últimos meses o mundo foi surpreendido com atos e manifestações a favor à democracia, e no Brasil, torcidas organizadas tomaram protagonismo ao ecoar o grito de resistência por todo país. Porém, a presença do futebol de encontro com a política não é recente, a história mostra um ciclo onde esses dois elementos sociais se cruzam no momento em que a democracia se encontra violada.
Quais são esses eventos históricos?
Neste momento, iremos apresentar quatro deles, desde ações em meio a Ditadura brasileira, até momentos inesperados em meio a uma guerra:
VASCO DA GAMA, TIME QUE VENCEU O RACISMO
Há muita divergência entre pesquisadores quando o assunto é a primeira presença de jogadores negros no futebol, alguns dizem que foi Bangu; outros apontam a Ponte Preta como pioneira; porém, sem dúvidas o Club de Regatas Vasco da Gama fora indispensável para a inclusão de atletas negros no futebol.
Em 1923, uma equipe que acabara de ser promovida para a primeira divisão, conquista o campeonato carioca. Como se não bastasse tal conquista para irritar os grandes clubes aristocráticos, o campeão carioca era formado por trabalhadores de origem humilde, brancos e negros, sem dinheiro e sem posição na alta sociedade. Este era Vasco da Gama.
Naquela época, o racismo imperava no futebol brasileiro. Em 1921, era debatido se jogadores de cor deveriam ser convocados para os importantíssimos confrontos entre a seleção brasileira e a da Argentina.
Com a conquista do Vasco, clubes aristocráticos se reuniram e deliberaram excluir jogadores humildes, sob alegação de “profissionalismo”. A confusão e vaias explodiram no recinto ao término da exposição feita por Mário Polo.
Barbosa Junior, do S.C Mackenzie, usou sua voz, este que era representante dos pequenos clubes, condenando o racismo dos grandes clubes, sendo o Vasco o mais atingido com a decisão dos aristocratas. Os brancos do Fluminense, Botafogo, Flamengo e América nem de leve foram tocados.
Vendo seus planos irem por água abaixo, os clubes grandes decidiram que se afastariam da Liga Metropolitana, formando uma nova entidade, a Associação Metropolitana de Esportes Atléticos. Estava decretada a divisão do futebol carioca.
Mário Polo e seus aristocratas acreditavam que os pequenos clubes ingressariam humilhados na nova entidade, submetendo-se às suas regras racistas e preconceituosas. Bangu e São Cristóvão comprovaram essas expectativas. Os demais times, enfrentaram tais medidas, a diretoria do Vasco enfrentou qualquer campanha racista.
Um ofício assinado pelo presidente do Vasco foi enviado a Arnaldo Guinle, presidente da AMEA, declarando publicamente que se negava a participar da nova entidade. Esse documento histórico, transcrito abaixo:
Eis o teor do ofício:
Rio de Janeiro, 7 de abril de 1924
Ofício no. 261
Exmo. Sr. Arnaldo Guinle, M.D. presidente da Associação Metropolitana de Esportes Athleticos.
As resoluções divulgadas hoje pela imprensa, tomadas em reunião de ontem pelos altos poderes da Associação a que V. Exa. tão dignamente preside, colocam o Club de Regatas Vasco da Gama em tal situação de inferioridade que absolutamente não pode ser justificada nem pela deficiência do nosso campo, nem pela simplicidade da nossa sede, nem pela condição modesta de grande número dos nossos associados.
Os privilégios concedidos aos cinco clubes fundadores da AMEA e a forma como será exercido o direito de discussão e voto, e as futuras classificações, obriga-nos a lavrar o nosso protesto contra as citadas resoluções.
Quanto a condição de eliminarmos doze (12) jogadores das nossas equipes, resolve por unanimidade a diretoria do Club de Regatas Vasco da Gama, não a dever aceitar, por não se conformar com o processo por que foi feita a investigação das posições sociais desses nossos con-sócios, investigações levadas a um tribunal onde não tiveram nem representação nem defesa.
Estamos certos que V. Exa. será o primeiro a reconhecer que seria um ato pouco digno da nossa parte sacrificar ao desejo de filiar-se à AMEA alguns dos que lutaram para que tivéssemos entre outras vitórias a do Campeonato de Futebol da Cidade do Rio de Janeiro de 1923.
São esses doze jogadores jovens quase todos brasileiros no começo de sua carreira, e o ato público que os pode macular nunca será praticado com a solidariedade dos que dirigem a casa que os acolheu nem sob o pavilhão que eles com tanta galhardia cobriram de glórias.
Nestes termos, sentimos ter de comunicar a V. Exa. que desistimos de fazer parte da AMEA.
Queira V. Exa. aceitar os protestos de consideração e estima de quem tem a honra de se subscrever de V. Exa. Att. Obrigado.
Dr. José Augusto Prestes
Presidente
O oficio deu maior popularidade ao Vasco, e maior admiração por meio dos torcedores. Fez com que este voltasse ao seio dos grandes clubes, e prometeu ser meio que todos eles.
O reinado dos arianos durou menos de um ano. Em 1925, os grandes clubes, verificando a potencialidade do Vasco, que dentro em pouco apresentaria o maior estádio do Brasil, abandonaram o racismo e remodelaram totalmente o futebol, permitindo a inscrição de jogadores humildes e concedendo ao clube da Cruz de Malta os mesmos direitos dos clubes fundadores da AMEA.
Com a inauguração do estádio de São Januário, em 1927, o Vasco, que em 1924 era o menor dos grandes, transformou-se no maior entre todos os clubes do Brasil.
O SANTOS DE PELÉ PAROU UMA GUERRA
Em 1969, o Santos Futebol Clube se destacava mundialmente, com Pelé no time, o melhor jogador do mundo na época. O time que estava indo jogar no continente africano não imaginava pelo que passaria. Desembarcaram na Nigéria no mês de janeiro de 1969 em meio a uma guerra civil. Conflito também conhecido como Guerra Biafra, foi iniciado em 1967, com o objetivo a separação da porção sudeste do território nigeriano para formação da República Biafra, tal país chegou a existir durante 31 meses em 1970, porém fora derrotado, e anexado novamente à Nigéria.
Apesar de ser uma história sustentada pelo clube, há quem diga que o episódio nunca aconteceu. De qualquer maneira, reza a lenda que o violento conflito foi suspenso momentaneamente para que o alvinegro praiano jogasse na cidade de Benin, que fora fortemente afetada na guerra.
A chegada do time teria sido tão importante que o governador, tenente coronel Samuel Ogbemudia, decretara feriado no período da tarde durante o jogo, além de autorizar o tráfego de pessoas na ponte que ligava Benin e Sapele, para que todos pudessem assistir ao jogo.
O FUTEBOL CONTRA A DITADURA NO BRASIL
JOÃO SALDANHA (JOÃO “SEM MEDO”):
Na época da ditadura, muitas figuras importantes foram publicamente se manifestar contra o regime, não apenas cantores e ativistas da época, porém, grandes nomes do futebol marcaram presença na luta contra a opressão. João Saldanha é um deles, que muitos consideram como responsável por montar o time da Copa de 1970, detentora do tricampeonato brasileiro e tida como a melhor seleção da história.
Saldanha ocupou o cargo de treinador da Seleção entre 1969 e 1970, sendo demitido poucos meses antes do campeonato mundial. Como a demissão ocorreu sem explicações, levantou-se a suspeita de que o então ditador e presidente Emílio Médici seria o responsável.
Acredita-se que antes de Saldanha deixar o cargo, Médici teria pedido para que ele convocasse o atacante Dário para o time; o treinador respondeu algo que desagradou o ditador:
“O Brasil tem 80 ou 90 milhões de torcedores, gente que gosta de futebol. É um direito que todos têm. Aliás, eu e o presidente, ou o presidente e eu, temos muita coisa em comum… somos gaúchos, somos gremistas e gostamos de futebol… e nem eu escalo ministério, nem o presidente escala time. Você está vendo que nos entendemos muito bem.”
Além de treinador, Saldanha era escritor, advogado, jornalista e membro do Partido Comunista Brasileiro (PCB), e manifestava-se abertamente contra a ditadura militar no país, fato que se intensificou após o assassinato de Carlos Marighella, este que era seu amigo, e morrera em 1969.
Anos depois, em uma entrevista no programa Roda Viva, fora apelidado de João “Sem Medo”. Durante a conversa, Saldanha afirma ter levado para o México inúmeros documentos que comprovavam centenas de prisões, mortes e torturas realizadas pela ditadura militar brasileira.
João Saldanha, ou melhor, João Sem Medo fora sem dúvidas um grande ícone não só no futebol, mas na história política brasileira, mostrando que o futebol pode ser e se apresentar mais do que “pão e circo”, pois reduzir o esporte à essa frase é reduzir lutas como esta.
DEMOCRACIA CORINTHIANA
Voltando ao início do texto, nota-se a presença do torcedor brasileiro nas lutas sociais, porém, a história apresenta eventos históricos em relação ao futebol e a democracia. Em especial, o evento que acontece durante a ditadura militar brasileira, trata-se da Democracia Corinthiana.
O movimento da Democracia Corinthiana é um capítulo marcante na história do Brasil, iniciada pelos próprios jogadores do clube na época, tendo a imagem de Sócrates associada ao movimento, com sua clássica comemoração com o punho cerrado para o alto como um símbolo de resistência. Em pleno momento de ditadura, o time tivera a coragem de estampar em sua camisa um emblema pedindo a volta da democracia no país, aplicando tal movimento de modo democrático a todos os integrantes do clube, seja jogador, presidente ou roupeiro.
O time se apresenta até os dias de hoje em comemoração ao fim da ditadura no Brasil, relembrando sempre da luta e resistência a favor da democracia:
Grandes movimentos foram formados pelo Brasil como ato de resistência, Como a criação da Coligay, torcida LGBT do Grêmio, está que foi de encontro ao preconceito em plena ditadura militar. O Fla-Diretas, que foi um movimento formado por torcedores flamenguistas, estes clamavam as eleições diretas no país.
ATUALMENTE
Retomando ao início do texto, 2020 foi um ano onde apresentou mais uma vez um ato a favor da democracia tendo o futebol como uma plataforma política. Em meio a uma crise institucional brasileira, guiada por ideias e posicionamentos negligentes de gestores políticos referente a pandemia, e ainda a eclosão de movimentos neofascistas, o contra-ataque aparece. E veio de onde muitos não imaginariam, partiu das torcidas organizadas o canto de resistência à opressão.
Gritos de torcidas antifascistas ecoavam em manifestações por todo país, estes que levam consigo o amor à camisa, mas principalmente o desejo democrático de um país livre de qualquer tipo de opressão.
Porém, há algo singular no protesto da avenida Paulista, em São Paulo: “a união de movimentos populares gestados pelo futebol em torno de uma pauta em comum, levantando a mesma bandeira, em que a luta contra o fascismo está acima do clubismo. Em um ambiente que se alimenta do cultivo da rivalidade e, por vezes, do ódio ao adversário que veste cores diferentes, o simbolismo da manifestação orquestrada por torcedores de Corinthians, Palmeiras, São Paulo e Santos se torna ainda mais notável, a ponto de despertar a indignação das elites reacionárias que não suportam afrontas orgânicas, democráticas e com cheiro de povo”. (PIRES, Breiller; 1 de junho de 2020, El País).
Negar que o futebol é um meio político fértil chega a ser falacioso, no contexto em que o Brasil se encontra, e principalmente suas referências políticas no futebol, mostram que o futebol pode ser muito mais que “pão e circo”. Ele é elemento cultural, memória política e paixão que move ideais. O futebol deve se mostrar cada vez mais ativo na vida do cotidiano brasileiro, e principalmente se mostrar a favor das lutas sociais, pois quem torce para ele é o povo que grita resistência do lado de fora do estádio.
REFERÊNCIAS:
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