7 de setembro é a data usada para relembrar um importante momento da história nacional: a independência brasileira, que sem os parênteses do título, significou a ruptura do território em relação a Portugal, deixando de ser colônia e se tornando independente. Porém, é necessário observar com mais atenção a história que é contada.
Figura 1: A Família Real no Brasil. Fonte: Professor Fiorin
A voz que conta a história
Durante o século XIX Napoleão Bonaparte dominava uma parcela da Europa e com o objetivo de desestabilizar a Inglaterra, decretou o Bloqueio Continental no qual fixou que todos os país da Europa deveriam parar de comercializar com o país inglês, do contrário, seria invadido pelo exército napoleônico.
Portugal, que temia descumprir o Bloqueio Continental, mas não queria deixar de comercializar com a Inglaterra, seguiu o plano elaborado pelo embaixador inglês em Lisboa e transferiu a família real para o território brasileiro, deixando as terras lusitanas sob a liderança de um comandante inglês.
Em 1808 com a mudança da família real portuguesa para o Brasil foi necessário adaptar a realidade do território para algo parecido com o que se tinha na Europa, e além de mudanças na arquitetura e na urbanização da capital, o Rio de Janeiro, o rei D. João VI fez algumas alterações significativas:
Permitiu ao território brasileiro comercializar com outros país e não somente com Portugal;
Elevou o território brasileiro de "colônia" para um "Reino" pertencente a Portugal, passando a se chamar: Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves;
Construiu e financiou: instituições públicas e administrativas, teatros, bibliotecas e universidades criando um cenário cultural e científico na capital;
Posicionou o então reino como uma nação expansionista invadindo a Guiana Francesa e a Cisplatina (atual Uruguai).
Por fim, o resultado dessas modificações alegrou os colonos donos de terras e comerciantes brasileiros e preocupou a classe conservadora monárquica de Portugal. Afinal, com o território começando a dar os primeiros passos sozinho, o medo de uma ruptura e a consequente perda do Brasil como fonte de exploração se tornava uma possibilidade.
Além disso, Portugal ainda enfrentava diferentes crises: política sob a liderança de um comandante inglês, social pela insatisfação popular com a ausência da família real e econômica.
Diante desse cenário, a elite portuguesa fundou as Cortes, instituições políticas liberais que iniciaram movimentos que insurgiram a Revolução do Porto com os objetivos de derrubar a liderança inglesa, transformar o Brasil de novo em colônia, retornar a sede do reino para Portugal, elaborar uma Constituição no território português e forçar o retorno da família real para a Europa. Assim, sob a ameaça de ser deposto, o rei português volta para Portugal com a corte deixando seu filho Pedro de Alcântara de 23 anos como regente do Brasil.
O cenário político nesse momento estava polarizado: de um lado, o discurso conservador ecoado pelos políticos portugueses no Brasil e pelas Cortes em Portugal exigindo o retorno do príncipe e a tentativa de recolonizar o território brasileiro; do outro, a voz da elite e burguesia brasileiras que exigiam a permanência do príncipe e sua separação com Portugal.
Enfim, em 7 de setembro de 1822, D. Pedro recebeu as últimas instruções do governo de Portugal, as quais o posicionava como um governador do território brasileiro, submisso aos decretos e exigências da corte portuguesa. Essa decisão fez com que D. Pedro cortasse o vínculo com a metrópole, se tornando o momento simbólico da Independência do Brasil. Assim, D. Pedro foi coroado imperador do Brasil em 1º de dezembro de 1822, tornando-se D.Pedro I.
Figura 2: D. Pedro I. Fonte: Brasil Escola
A (in)dependência brasileira
Depois de relembrado o que se repete nos livros didáticos e na maioria dos textos da internet sobre esse momento histórico, é (sempre) necessário fazer algumas considerações: diferente de outros países latino americanos como Argentina, México e Peru que realizaram suas independências e se tornaram repúblicas, o Brasil foi o único país da América Latina a passar pelo processo de independência de sua metrópole e, ainda sim, manter um regime monárquico.
Durante o período em que a família real portuguesa ficou no Brasil, conhecido como período Joanino, já havia algumas províncias que defendiam não só a independência de Portugal, como suas autonomias como países republicanos e abolicionistas tendo como referência a Revolução Pernambucana (1817).
Então, por quê o Brasil não se tornou republicano? Ou por quê não houve a separação de várias províncias em países republicanos?
Caso houvesse guerras defensoras da república, haveria o comprometimento da escravidão no Brasil que sustentava a existência da maior parte das províncias. O medo da elite proprietária de terras e dependente da escravidão era de que negras(os) e povos originários escravizadas(os) fizessem parte das guerras ou pelo alistamento ou como forma de luta pela liberdade, com a posterior aceitação da mão de obra antes escravizada como trabalhadora em territórios recém independentes republicanos. Assim, as demais províncias mantenedoras da escravidão seriam cada vez mais suprimidas.
Então, para manter a sobrevivência da elite brasileira teve-se de manter a escravização dessas populações sob um governo monárquico e ditador, o Império Brasileiro, ou Primeiro Reinado, de D. Pedro I.
Essas observações raramente se fazem presentes em livros, sites ou mesmo no discurso de professores e/ou pesquisadores. Isso porque a história dos acontecimentos lembrados no início deste texto são reproduzidos sob o olhar do colono, latifundiário e escravista que precisa(va) manter a existência desse discurso.
O contador da História
Sempre que se ouve alguém contar uma história, antes de tirar qualquer conclusão, é importante se observar quem a conta e como essa pessoa o faz, porque todos partem de uma perspectiva ou ponto de vista e com a História¹ não é diferente.
Nesse momento de relembrar um marco da História brasileira, identificar quem a construiu e sob qual ponto de vista é observada e contada hoje, permite esclarecer os reflexos socioeconômicos da atualidade além de recriar a narrativa sobre uma nova perspectiva.
Justamente por isso, em 10 de março de 2008 a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) foi atualizada pela Lei 11.645 tornando obrigatório o estudo das histórias e culturas afro-brasileira e indígena no brasil nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio nos sistemas público e privado brasileiros.
Figura 3: Pintura: Fundação da Pátria Brasileira (Eduardo de Sá). Fonte: Medium
Apesar disso, na maior parte dos veículos de informação, sejam sites e/ou livros didáticos, ao falar sobre a História brasileira se reproduz o discurso de uma perspectiva colonizadora, latifundiária e branca. Principalmente em textos que abordam o período colonial, isso ocorre de algumas maneiras como:
Fazendo uso da palavra “brasileiros” para identificar a população do território nacional e deixar de mencionar que, na verdade, ela se refere a elite e burguesia brancas da época, excluindo populações nascidas aqui porém escravizadas;
Usando somente “negro”, “o negro” para representar toda a população escravizada negra desconsiderando mulheres e crianças, reforçando sua objetificação;
Considerando as palavras “escravo” e “africano” como sinônimos, reafirmando a condição natural de povos negros à escravização;
Retratando povos nativos e negros somente a partir do momento em que foram escravizados pela população branca, como se suas histórias não existissem antes disso;
Repetindo adjetivos como “fujões”, “cativos”, “insubordinados” ao falar de pessoas escravizadas que resistiam e lutavam a favor de sua liberdade;
Caracterizando quilombos como lugar de “fugitivos”, uma vez que quem os considera assim é o enunciador branco e colonizador;
Enfatizando a contribuição da população negra no processo de construção da História brasileira e esquecendo a participação e contribuição de povos originários.
Esses são somente exemplos de como a escolha por palavras e/ou frases mostram a voz que enuncia a História brasileira. Além de textos verbais, há também que se observar a presença de ilustrações/imagens/pinturas e fotos nos livros didáticos que reproduzem ou reforçam estereótipos sobre populações escravizadas no Brasil.
Assim, este 7 de setembro pode (e deve) ser utilizado para repensar qual é a voz responsável por contar a História brasileira e como ela o faz, para que se possa entender as consequências atuais desse discurso e, a partir daí, ouvir e significar outras vozes presentes na construção histórica nacional podendo assim construir uma nova realidade.
¹ Neste texto se faz uso da letra maiúscula para designar um significado específico da palavra "história" como: "1.Narração escrita dos fatos notáveis ocorridos numa sociedade em particular ou em várias", assim como "3. Ciência ou disciplina que estuda fatos passados." Já o uso da letra minúscula denota o significado: "5. ESTÓRIA, NARRAÇÃO, NARRATIVA", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa.
Referências:
BEZERRA, Juliana. Independência do brasil. Toda Matéria. Disponível em<https://www.todamateria.com.br/independencia-do-brasil/> Acesso em 01 de set 2020.
Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. História.2008-2020,< https://dicionario.priberam.org/hist%C3%B3ria> Acesso em 01 de set de 2020
MAESTRI, Mário.Brasil, 1822: Um País Parido pela Escravidão. Portal Geledés. Disponível em<https://www.geledes.org.br/brasil-1822-um-pais-parido-pela-escravidao/>Acesso em set 2020
SILVA, Daniel Neves.Independência do Brasil. Brasil Escola. Disponível em:<https://brasilescola.uol.com.br/historiab/independencia-brasil.html>Acesso em 31 de ago de 2020.
RIBEIRO, Mírian Cristina de Moura Garrido. Escravo, africano, negro e afrodescendente: a representação do negro no contexto pós-abolição e o mercado de materiais didáticos (1997-2012). 2011. 208 f. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras de Assis, 2011. Disponível em: <http://hdl.handle.net/11449/93371>. Acesso em 02 set 2020
SEVERO, Lara de Freitas.O negro nos livros didáticos. Um enfoque nos papéis sociais. Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2009. Disponível em<https://www.geledes.org.br/o-negro-nos-livros-didaticos-um-enfoque-nos-papeis-sociais/> Acesso em 02 set 2020.
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